A Morte é Súbita e Inesperada de um Passado Próspero
Quando tudo parece bom é quando estamos perdidos
Máquina do tempo comprada na internet, talvez foi isso. Entro nela e regulo os botões coloridos e piscando. Ajusto os comandos para um tempo que não mais existe, o tempo que me achava ser feliz.
Para encontrar os pedacinhos que restaram das pessoas que perdi. Porém tomo todo o cuidado para não alterar nada e mexer em nada pois isso pode trazer consequências graves gravíssimas no continuum do tempo. Me comporto como um fantasma invisível.
Tudo no passado é igual, pois o tempo não existe. Procuro os vestígios de mim mesmo pelas ruas. Os cheiros das coisas despertam a memória. Na pracinha, os namoradinhos se beijam. As mesmas pessoas circulam, nada mudou, só a o verniz do tempo; o mundo é velho por natureza. O cafezinho chegou com o pão frito e queijo. Um garotinho me pede um dinheiro. A esmola é a omissão de culpa vendida a preço de banana. Pega isso e some da minha frente.
Observo as lindinhas, cruzam pra lá e pra cá. Calças e camisetas apertadinhas gritando eu quero vida. Tatuagens tipo filmes medieval fantasia da Netflix. Celulares em punho comunicando-se com um mundo virtual, um mundo supostamente melhor. Param e conversam; risadas. Tudo tem cheiro de sexo e vida.
A curiosidade ingênua faz com que uma delas me dê seu olho. E naquele instante de sincronia perfeita o meu olho corresponde como fora sincronizado; e nesses momentos mágicos a história da humanidade é transmitida instantaneamente sem vergonha, pudor ou ego. Anonimamente transmitimos sinais como as abelhas fazem com suas anteninhas. Comunicamos tudo o que queremos. As pregas do universo se revelam.
Os cheiros da rua entram pelas minhas narinas em festa. Outra mulher passa. Madura. Calça apertadinha na área pélvica. A novidade do local é puxar a calcinha para cima separando a lábia numa obvia e muito bem-sucedida maneira de dizer: olha o que eu tenho de bom. O público demonstra-se indiferente, mas na verdade celebra.
Outras donas de vaginas menos privilegiadas encontram dificuldades em fazer um montinho que se mostra ao mundo. Outras fazem um babado de colocar um dos lábios pro lado, gordinho e saliente, mas só de um lado. Não sei como fazem isso, mas imaginar como fazem é em si uma aventura. Uma variação desta nova moda? Liberação feminina ou carência?
O garoto agora me vende um saco de batata frita. Dentre os alimentos de classificação comida rápida, a batata frita é o mais interessante. Gratificação gastronômica imediata. O sal e a gordura combinados com o amido de rápida assimilação glicólica bate como uma droga intravenosa. Após mastigar um chip o cérebro imediatamente quer mais um, seguido de outro até que a decência e o bom senso intervêm e acionam uma ordem urgente urgentíssima: pare! Minha mente reflete em devaneios bêbados intercalados por olhadinhas infrutíferas ao celular. Olho para a mesma foto trinta vezes e nada acontece.
Me pergunto o que estou fazendo aqui. Assim como no sexo, as fantasias são mais ricas e completas do que a realidade. Ficaria melhor só na memória? Aqui só existem fantasmas; antigos e os novos fantasmas. As gerações de fantasmas já têm até hierarquia classificatória. O período jurássico, moderno e atual. Quase todos mortos. É que nem aquele filme que o rapaz volta para a sua aldeia e vê que foram todos massacrados. Conclui que está só no mundo. Farei novos amigos, digo a mim com esperanças. Mas também um dia morrerão. Não há como escapar da vida e da morte. Relaxo com abandono na inevitabilidade dos fatos. Outra batata frita.
Olho para a calçada e uma infinita multidão caminha na direção da minha mesinha. Os que estão mais perto vejo-os com nitidez e os mais longe são vultos fora de foco. Apenas vejo as cabeças no seu movimento sobe-desce como pequenas ondas assim como num jogo de totó. Engajo minha atenção na cabeça branca de alguém. Aproximando-se vejo que seu cabelo é comprido, barba com mechas brancas e bem aparada, terno preto. Vejo o seu olhar que agora se aproxima: fantasmagórico. Sou tomado por um sentimento de ansiedade que me bateu como um pássaro desnorteado colidindo na minha cara. Olho para um outdoor de rua e o palhaço que ria é agora uma máscara grotesca.
Meu ilustre personagem é o meu velho amigo Paulinho. Que boa e grande coincidência exclamo eu. Paulinho se aproxima em minha direção e sua expressão não muda. Sua seriedade não corresponde ao momento. Ele me vê tenho certeza, me reconheceu, o que é isso? Paulinho dirige-se a mim como se fosse me dar um abraço, tira do bolso de dentro do seu terno um punhal longo e fino de lâmina dupla. Fita-me diretamente na alma do olhar e enterra o objeto cortante em meu abdômen. A lâmina penetra sete centímetros em minhas vísceras causando hemorragia instantânea.
Sem tempo para entender o que ocorrera ponho a mão no ferimento e cambaleando tento fugir do assaltante. Olho mais uma vez para ele e sua expressão não mudara. Perplexo corro para dentro do bar restaurante onde estava. Tropeço derrubo mesas e cadeiras. Sangrando muito causo logo o alarde entre os fregueses que chamam uma ambulância. Paulinho me segue com o seu stiletto em mão. Entro na cozinha do restaurante e me escondo dentro de uma dispensa. Começo a perder forças e ele me acha, agora indefeso, sou esfaqueado em todas as partes do corpo. Desmaio. Fade to black.
Acordo como se estivesse dentro de um sonho. Estou deitado em uma maca onde médicos e enfermeiros empurram-me em um corredor também cheio de vitimas. Acidentes e mortes estão em toda parte nessa sala de emergência. Uma máscara de oxigênio me tampa a respiração ao som do alarme de uma das máquinas, bip, bip, bip, bip…o ruido do alarme é amplificado a cada tocada. E porque fariam isso, penso eu. Já não basta o barulho que existe aqui. Em meio ao pânico de morte abro os olhos repentinamente e percebo que o bip vinha do meu despertador. Vejo o teto do meu quarto. Estou de volta em casa, que bom, a viajem acabou. Aprendi, contudo, não devo assistir esses filmes violentos medievais da Netflix antes de dormir.
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Photo by Bruno Oliveira